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investigandoonovoimperialismo

O governo colombiano dá luz verde a fumigações em reservas indígenas

07.01.08

Ibagué, Colômbia.- Em Setembro passado, o governo do presidente Álvaro Uribe Vélez negou-se a votar a declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas. Argumentou que não podia assinar porque supostamente algumas disposições da declaração contradiziam a ordem jurídica colombiana e os poderes do Estado. Como costuma acontecer nestes casos, nenhuma entidade governamental, nem sequer a Direcção de Etnias do Ministério do Interior, conseguiu explicar claramente as estranhas ambiguidades desta decisão.


O senador Gerardo Jumí

O senador Gerardo Jumí. (Foto de Laura del Castillo)

Quais terão sido os artigos dessa declaração que, segundo o governo afrontavam a “ordem jurídica colombiana e os poderes do Estado”? Seriam por acaso aqueles que referem os direitos dos povos indígenas à conservação e protecção dos seus territórios, bem como ao uso que se lhes deve dar? Ou talvez aquele que fala sobre as limitações que devem ter os governos para levar a cabo operações militares dentro de territórios indígenas?

Os acontecimentos dos meses seguintes responderam por si próprios a estas questões e pareceram dar razão aos que pensaram que por trás da retórica jurídica do governo para não votar na ONU, se escondia um profundo racismo, a recusa em reconhecer os direitos dos povos indígenas, especialmente em matéria de território e acima de tudo, a firme intenção de manipular as leis descaradamente, mais uma vez, em prol de interesses particulares.

Julguem, vocês mesmos, caros leitores.

O decreto

A 8 de Outubro, o Conselho Nacional de Estupefacientes – encabeçado pelo Ministro do Interior, Carlos Holguín Sardi – aprovou uma resolução que abriu o caminho à Polícia Anti-Narcóticos para levar a cabo fumigações de cultivos ilícitos dentro das reservas indígenas do país. Desde 2003 estava proibido à polícia – cujo trabalho é financiado pelos fundos do Plano Colômbia – levar a cabo aspersões aéreas dentro desses territórios.

Segundo a reportagem do semanário colombiano El Espectador – que revelou o decreto a 24 de Novembro, e é o único grande meio de comunicação do país que deu cobertura ao tema – a medida aparece após um processo de “consulta prévia” às comunidades. Estas consultas ter-se-iam realizado nos distritos de Guaviare, Magdalena, Norte de Santander, Putumayo, Cauca, Caquetá, Vichada, Arauca e Guainía, e estão pendentes para Chocó, Amazonas, Antioquia, Córdoba, Valle, Meta, Nariño e Vaupés.

É mesmo assim, “consulta”, entre aspas. O conhecido colunista Alfredo Molano escreveu há três semanas que

“o governo faz chantagem sobre os indígenas com um garrote e uma cenoura. O garrote, ser acusados de narcotráfico e terrorismo; e a cenoura, prometer, em troca da aceitação, ampliação das reservas, emissoras indígenas, programas de protecção florestal, escolas, postos de saúde, estradas e, leia-se bem, cuidados com os direitos humanos”.

Isto é, o governo optou por “premiar” as comunidades indígenas com benefícios que lhes correspondem por direito. E se não funcionar a bem, pode sempre recorrer a um dos métodos persuasão mais eficazes: a repressão sabiamente administrada pelas forças militares colombianas apoiadas por membros dos denominados “grupos emergentes” paramilitares.

“O decreto está a assinalar coisas que não são correctas,” manifestou o líder e senador da República, Embera Gerardo Jumí. “Por exemplo, que foram consultadas as organizações indígenas… Não se pode fumigar sem que antes se tenha consultado e nalgumas regiões elas pararam, mas dão como certo que noutras se podem fazer sem nenhum obstáculo”.

Jumí falou com a Narco News na cidade de Ibagué (a 200 quilómetros a oeste de Bogotá), onde cerca de 2000 representantes indígenas de cada região do país se encontravam reunidos durante os dias 9 a 15 deste mês para realizar o VII Congresso da Organização Nacional Indígena da Colômbia (ONIC). Falou-se muito entre os participantes sobre o tema das fumigações e os danos que causam nos territórios indígenas.

 “A consulta prévia não é um procedimento, é um direito fundamental dos povos indígenas,” explicou Darío Mejía, líder indígena zenú e membro do Conselho Directivo da ONIC, “pois é também o direito à participação e à definição do seu próprio futuro, das suas próprias estratégias de desenvolvimento”.

“Em muitas regiões,” afirmou, “o cultivo da folha de coca é uma questão forçada, que se apresenta porque os actores armados a impulsionam de forma obrigatória à população, ou simplesmente é a única defesa económica que esta tem, devido a que o ambiente não permite outro tipo de cultivo. Inclusive o próprio governo, através das suas políticas, levou a que as pessoas cultivem coca.”

“Por outro lado,” disse Mejía, “em termos políticos, a fumigação é uma arma de guerra, uma arma biológica. Não mata apenas a folha. Pior, não a mata. Mas sim danifica o resto dos cultivos de subsistência. Os procedimentos para denunciar um prejuízo são complicados e, para além disso, no contexto do conflito armado, as pessoas não se atrevem a denunciar, pois a própria força pública se encarrega de o impedir.”

Mas quais foram os argumentos do governo para aprovar esta resolução? Carlos Albornoz, Director Nacional de Estupefacientes, explicou-o de una maneira bastante curiosa ao jornal El Espectador, em Novembro passado:

Os cultivos são ilícitos e está-se a respeitar o costume ancestral do consumo pelos indígenas. Mas acontece que alguns ultrapassaram os limites e estão a semear para exportação, por isso se iniciaram estes trabalhos de erradicação. O Governo fez ajustes à sua política anti-drogas, dando maior ênfase à erradicação manual, mas existem zonas onde só se pode fumigar por via aérea. Suponho que nesses casos se irá avaliar a situação de cada reserva antes de aspergir.

Várias delegações indígenas participantes no Congresso da ONIC, afirmaram em uníssono que não há cultivos ilícitos nas suas reservas. Os que existem, segundo eles, estão nos limites de territórios indígenas e são semeado por camponeses, com os quais, certamente, o governo também não chegou a fazer acordos para criar programas de desenvolvimento alternativo ou de erradicação manual verdadeiramente eficazes.

Ashcayra Arabadadora, indígena barí do Norte de Santander e representante legal da Associação Comunidade Motilón Barí da Colômbia (ASOCBARI), explicou: “Nós começámos a dialogar [com os camponeses não indígenas], para que façam a erradicação manual com ajuda da comunidade barí, nos limites da reserva”.


Ashcayra Arabadadora, lider barí

Ashcayra Arabadadora, lider barí (Foto de Laura del Castillo)

E se já assim se têm vindo a fumigar as reservas indígenas – com a vénia de entidades governamentais como o Ministério do Meio Ambiente e a Oficina de Parques Naturais – a aprovação da resolução incrementará notavelmente as aspersões e as suas consequências devastadoras.

“Em 2002 fizeram-se consultas na nossa reserva,” disse Arabadadora, “ainda que não se tenha chegado a acordos definitivos. Mas agora nem sequer fomos consultados no que respeita ao povo Barí. Preocupa-nos que isso afecte os cultivos tradicionais, as plantas medicinais dos nossos antepassados, porque já temos a experiência com as fumigações que se levaram a cabo no ano 2000. Outra coisa preocupante é que os camponeses não sabem que vão voltar a fumigar. Muitos camponeses deslocados estão a regressar a zonas como La Gabarra, e isto poderia prejudicá-los, ainda por cima com a reactivação de novas bases militares”.

“O que nos preocupa com esta decisão,” disse Mejía, “é que, se antes disto já se andava a fumigar, agora vai fumigar-se o dobro. Isto é o que aumenta o perigo e o que verificamos é que muitos são deslocados por causa das fumigações. E agora, o problema vai aumentar ainda mais”.

Mejía acrescentou que as fumigações com glifosato nunca figuram entre as principais causas de deslocados dentro das bases de dados de instâncias governamentais que supostamente se ocupam desta problemática, tais como a Acção Social. Mas, mesmo que o governo colombiano e os funcionários da Embaixada dos Estados Unidos insistam em afirmar – baseando-se em estudos de cientistas pagos por eles mesmos - que o glifosato é uma substância inofensiva, os testemunhos e provas recolhidas em várias regiões afectadas, mostram que as fumigações estão efectivamente a arrasar com grandes áreas de cultivos… mas de agricultura de subsistência.

Esta situação, afirmaram os indígenas entrevistados, muitas vezes leva a que os indígenas se desloquem para as terras dos colonos. Então têm que oferecer a sua mão-de-obra para cultivos ilegais, já que não têm como sobreviver depois dos seus cultivos ancestrais terem sido arrasados pelos químicos. Desta forma, o círculo vicioso nunca termina e entretanto o governo sempre fica com desculpas para criminalizar as comunidades, cujos membros se não se deslocam, ficam nas suas terras, à beira da morte, por causa da resultante falta de comida.

A tudo isto há que somar os casos – reiteradamente denunciados – de contaminação de rios, doenças e inclusive a morte de alguns membros das comunidades afectadas. O jornal El Espectador lembra o que aconteceu em 2005, quando a etnia Eperara Siapidaara do Pacífico Nariñense sofreu a morte de três das suas crianças e a agonia de outras 16 que ficaram doentes, por causa das fumigações, como o comprovou o Instituto Distrital de Saúde de Nariño.

Outros interesses

A verdade é que tanto Uribe como Bush andam demasiado ocupados para se preocuparem com drogados inúteis que são um estorvo para o sistema de vida capitalista. Ao governo do presidente Uribe interessa-lhe tanto fumigar as reservas indígenas não só porque lhe preocupa que haja cultivos ilícitos ali, mas também porque estes territórios são focos centrais de exploração de recursos naturais por parte das multinacionais.

Mas que seja Darío Mejía a melhor explicar o que se esconde por trás da resolução para fumigar nas reservas: “Este decreto corresponde a uma estratégia interna, que como vemos está relacionada com o controlo dos territórios. Este fenómeno dos deslocados provoca o esvaziamento de alguns territórios, que são depois controlados pelas máfias, que são grupos legais, pois estão representados no congresso da república por assessores que ditam as leis para que estas regiões se convertam em regiões madeireiras ou em regiões de monocultivos para a produção de agro-combustíveis ou de criação intensiva de gado”.


Darío Mejía, membro do conselho directivo da ONIC

Darío Mejía, membro do conselho directivo da ONIC (Foto de Dan Fader)

As reservas Barí do Parque Nacional Catatumbo (Norte de Santander), por exemplo, são apetitosas para os grandes consórcios madeireiros e de exploração carbonífera.

“Na actualidade,” explicou Arabadadora, “vemos que todas as concessões a multinacionais do carvão, foram dadas nas mesmas zonas onde se tinham feito as fumigações e existia uma forte presença militar e paramilitar. Geofising (empresa carbonífera europeia) tem uma concessão de 1,531 hectares e vai fazer uma exploração a céu aberto. Já tem títulos mineiros. Agora espera-se o estudo de impacto ambiental, no qual o povo barí não participou. Nem sequer foi consultado para o processo”.

Assim, as aspersões em territórios indígenas são uma boa prenda de natal do governo colombiano, com a qual todos ganham: as multinacionais que podem passar a dispor de estes territórios fumigados a seu belo prazer; as corporações militares privadas norte-americanas como a Dyncorp que fornecem toda a artilharia pesada para fumigar; as indústrias de químicos que fabricam o venenoso glifosato Monsanto, os principais amantes do paramilitarismo (leia-se os detentores de terras e as grandes elites colombianas de onde provém o nosso presidente e a sua bancada), e obviamente, a hipocrisia dos governos da Colômbia e Estados Unidos relativamente ao tema do narcotráfico.

Os únicos perdedores são os indígenas e os camponeses. Mas num país que nunca superou os vícios dos seus primeiros colonizadores, isso, simplesmente, não interessa…

 


 

Texto de Laura del Castillo Matamoros publicado pela Narco News a 22 de Dezembro de 2007. Tradução de Alexandre Leite.


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