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investigandoonovoimperialismo

Atirá-los ao mar

11.05.15

A Europa está acostumada a atirar homens ao mar, tal como fez durante séculos de escravatura

 

Frente à hipocrisia e à indiferença, apetece e até se impõe ser um pouco demagógico. Digamos a verdade: a Europa está acostumada a atirar homens ao mar. Fê-lo durante séculos num quadro de rentabilíssimo comércio de escravos no qual participaram todas as grandes nações que dão hoje lições de humanidade e democracia ao resto do mundo. O antropólogo Fernando Ortiz recordava num dos seus livros o número: em 1825 calculava-se que em cada ano os negreiros clandestinos atiravam ao oceano 3000 escravos vivos, quer fosse para escapar às patrulhas, quer fosse para se desprender de mercadoria defeituosa. Muitos mais tinham morrido antes, durante o acarreio pelo continente africano ou durante a espera nos barracões do porto.

Em 1818, quando se proibiu o tráfico ao mesmo tempo que se mantinha a escravatura (como hoje!), o muito católico rei espanhol Fernando VII justificava a medida dizendo que já não era preciso trasladar para a América os africanos para os civilizar porque a empresa colonial ia ocupar-se de os civilizar nos seus próprios países de origem. Continuamos a civilizá-los nos seus países de origem, continuamos a selecionar mão de obra barata, continuamos a proibir o tráfico e continuamos a atirá-los ao mar.

A grande escritora negra Toni Morrison emitiu há anos o veredito: “Não podes fazer isso durante centenas de anos e não pagar uma portagem. (Os europeus) tinham que desumanizar não apenas os escravos, mas também a si mesmos. Tinham que reconstruir tudo para fazer com que o sistema parecesse verdadeiro. Isso fez com que tudo fosse possível na segunda guerra mundial. Fez com que a primeira guerra mundial fosse necessária. Racismo é a palavra que utilizamos para englobar tudo isto”. O que o teólogo alemão Franz Hinkellammert chama com razão “genocídio estrutural” inscreve-se numa grande doença europeia que nos apodreceu a alma até ao ponto de que podemos atirá-los ao mar e depois irmos a Malta num cruzeiro.

São mais de mil mortos numa semana; mais de 20 mil nos últimos 15 anos. Números parciais, enganosos, que não há censos no fundo dos mares. Não estou disposto a negar a responsabilidade dos traficantes que exploram o desespero dos humanos; têm a mesma que os negreiros do século XIX e mantêm, com o sistema neocolonial europeu a mesma relação de dependência e funcionalidade. Também  não estou disposto a negar a responsabilidade dos que alugam um centímetro de sorte nestas barcas de Caronte. Até o mais desgraçado dos humanos pode decidir o seu destino; mas até o mais desgraçado dos humanos tem direito a eleger um destino melhor sem jogar a vida. De que são responsáveis? O seu crime, como diz Juan Goytisolo, é “o seu instinto de vida e a ânsia de liberdade”, esse átomo de liberdade que usam para fugir da guerra ou da miséria e para reivindicar o seu direito a se deslocarem, a trabalhar, a existir sem pedir esmolas ou desculpas.

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Cartune de Marian Kemensky, Eslováquia

Temos visto a resposta dos nossos governos e dos nossos políticos. Há duas. Uma, a hipocrisia: lamentam-se as mortes e exibe-se contrição enquanto se reforça o Frontex e a operação Tritão; isto é, enquanto se multiplicam os meios, como Fernando VII, para “civilizar” na origem os africanos e destruir os barcos dos traficantes. Já sabemos o que isso significa e as consequências que trará: apoiar ditaduras e justificar intervenções que gerarão mais frustração, mais miséria, mais guerras, mais jiadismo, num circuito de retroalimentação de que só beneficiam os mais poderosos, os mais ricos e os mais injustos.

A outra resposta é o cinismo dos partidos e intelectuais da ultradireita que deitam sal na ferida europeia com um desprezo explícito em relação a esses milhares de pessoas que, segundo a propaganda da Liga Norte, procuravam umas “férias pagas” na Europa e pelas quais não devemos sentir nenhuma piedade ou consideração.

Os cínicos pelo menos não mentem. Porque cinismo e hipocrisia formam parte do mesmo sistema e retroalimentam-se. A hipocrisia, com as suas leis migratórias, nutre o cinismo dos outros e acabará por colocar os governos europeus nas suas mãos. Historicamente tem sido sempre assim: os hipócritas, com o não fazerem o que dizem, acabam cedendo o poder aos cínicos e aos seus crimes despudorados. Os “civilizados europeus” foram sempre a antecâmara dos nossos próprios bárbaros. Não há nenhuma alternativa à hipocrisia e ao cinismo? É muito simples: ou Declaração dos Direitos Humanos ou declaração de guerra. Quer gostemos quer não, vão continuar a chegar. Porque –por quê?– continuamos a gostar tanto?

 

Texto de Santiago Albo Rico publicado a 3 de Maio de 2015 no Diagonal. Tradução de Alexandre Leite.


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