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investigandoonovoimperialismo

O que queremos dizer quando dizemos pomba?

13.04.15

Numa aula recente falava aos meus alunos tunisinos sobre o poder dos arquétipos simbólicos e dava-lhes o exemplo da pomba. A esse propósito líamos em voz alta dois poemas muito conhecidos, o das pombas escuras de García Lorca e "Equivocou-se a pomba" de Rafael Alberti; e um terceiro menos familiar de Nicanor Parra no qual uma pomba ressuscita perante os olhos do poeta num parque de Nova Iorque. Anteriormente tinha-lhes pedido que fizessem uma frase na qual figurasse a palavra “pomba”. Pode imaginar-se o resultado. Não há muito a fazer: quanto a pomba começa a voar, todos a imaginamos inevitavelmente branca, pura, inocente, com um ramo de oliveira no bico, e é a partir dessa imagem que lemos os versos de Lorca, com o seu misterioso oximoro de louros e morte, ou os de Alberti, com os seus mal entendidos alados, mas também -e isto sim chama a atenção- os muito realistas e urbanos, tão concretos e narrativos, de Nicanor Parra. A pomba de Nicanor Parra vive, morre e ressuscita -tudo num instante- em Nova Iorque, cidade onde as pombas, como em todas as cidades do mundo, são sujas, cinzentas, ávidas e feias; vão deixando as suas líquidas e corrosivas evacuações por todo o lado, irritam os nervos com o seu neurótico arrulho, transportam doenças e, comportam-se tanto como uma praga que se parecem mais com ratos do que com borboletas.

Mas não há muito a fazer: quando aparecem num poema -isto é, na nossa vitrina mental- inclusivamente as pombas de Nova Iorque imaginamo-las brancas e puras, mensageiras da paz, arrulho de enamorados, promessa de um mundo melhor. A realidade tem muito menos poder que o arquétipo, que se impõe sobre essas pombas realmente existentes que suportamos, ignoramos ou combatemos nas nossas cidades. Não  quer dizer que tenhamos inventado as simbólicas. Como acontece que a maior parte dos homens vive já em espaços urbanos e, de entre as 300 espécies de pombas, a única que vemos é a que se adaptou às (e parasita) nossas lixeiras (a chamada pomba brava), todas as outras se foram refugiar na nossa imaginação. Formam parte de outro tempo e outra maneira de viver. É como se imaginássemos e recordássemos a partir de um passado remoto -o dos nossos antepassados neolíticos- que continua a determinar, contra a concreta realidade imediata, os nossos desejos e medos. Digamos que o nosso mundo emocional se elabora a partir de um material que já não existe, como a luz das estrelas, e só “reconhece” o conteúdo destes arquétipos mentais herdados de outras épocas e outros trabalhos. A “ideia” de pomba -a de Noé, a do Espírito Santo, a de Picasso- é uma realidade morta e, no entanto, muito mais verdadeira que a realidade viva, e isto até ao ponto de que as pombas reais às quais atiramos migalhas de pão nas praças das nossas cidades se alimentam dos nossos arquétipos, sem os quais as veríamos tal e qual como como são: sujas, nervosas e vorazes. O nosso mundo mental e emocional é tão autónomo e, ao mesmo tempo, tão poderoso que, por exemplo, esses mesmos habitantes de Nova Iorque que imaginam brancas e puras as pombas -circundados de pombas cinzentas e cagonas- transportam também o imaginário medieval sombrio do Capuchinho Vermelho e da Branca de Neve: quando se lhes pergunta, por exemplo, pelos seus maiores medos, os nova-iorquinos -relata-nos a bióloga Barbara Ehrenreich- não citam em primeiro lugar os ladrões ou as armas de fogo ou os acidentes de tráfego, estando como estão rodeados de armas e de automóveis, mas sim asseguram temer, acima de tudo, os animais selvagens! Não há pombas brancas nem animais selvagens em Nova Iorque e, no entanto, as nossas emoções continuam povoadas de pombas puras e bosques tenebrosos onde nos devoraram os lobos.

pomba-branca.png

(NT: a imagem que aparece primeiro na pesquisa da palvra "pomba" no Google)


Pois bem, poucos dias depois de ter falado aos meus alunos sobre os poderes dos arquétipos e das misérias das nossas pombas urbanas, viajei para Maiorca e lá, na cidade de Palma, num edifício de dez andares, houve uma manhã em que me levantei cedo e aproximei-me de uma grande janela para ver nascer o sol sobre o mar. Nesse momento, no meio da neblina, pareceu-me ver aproximar-se uma silhueta esvoaçante; aproximou-se a voar, de facto, e pousou com sageza no parapeito da janela, do outro lado do vidro, à altura do meu ventre. Era uma pomba. Não. Era A Pomba. Era uma pomba plumosa, branca, nacarada, belíssima, a pomba sonhada, a pomba arquétipo que eu tinha declarado morta ou perdida no passado ou, pelo menos, enjaulada na nossa imaginação. Olhei-a e ela olhou-me. Não tinha nenhum medo. Pelo contrário. No apenas não fugiu a voar nem se afastou do meu corpo mas caminhava elegante sobre o parapeito voltando uma e outra vez a cabeça na minha direção, aproximando-se do vidro e dando bicadas ali onde eu colocava o meu dedo, como se quisesse advertir-me contra o mal entendido de um azar. Durante vários minutos estivemos assim, trocando mensagens de morse -ela com o bico e eu com o dedo- e tive a certeza (como Nicanor Parra em Nova Iorque) de um milagre certo, sóbrio e banal. As pombas tinham mandado a pomba branca para reivindicar o seu prestígio, que eu tinha insultado, ou talvez para me demonstrar que a força demiúrgica dos arquétipos. Quando retomou novamente o seu voo eu fiquei, como Nicanor no seu poema Ressurreição, “pensando em tantas coisas”.

Qual é a moral da história? Se todos pensamos em pombas brancas e puras sendo as pombas cinzentas e deprimentes, não deveríamos ser realistas? Destruir o arquétipo? Desenganar os seres humanos que impõem ao mundo ideias falsas, alimentando assim uma praga material de ratazanas aladas? Não. Digamos, em primeiro lugar, que é muito mais difícil lutar contra um arquétipo mental que contra uma praga real e que, por tanto, devemos antes parasitar o arquétipo, orientá-lo e mobilizá-lo no mundo real -inclusivamente contra as pragas que parece ele mesmo engordar. Mas para além disso, o arquétipo da pomba, como todos os imaginários activos, não é um capricho da fantasia mas o seu pedúnculo radica numa memória material de que que ainda restam -como o demonstra o milagre maiorquino- exemplares presentes e vivos. Finalmente, e em linha com o anterior, há que acrescentar que sem esse arquétipo, que continua a cumprir um papel classificatório na imaginação e na  zoologia, não reconheceríamos as raras pombas brancas que ainda existem e se acercam de nós. Sem esse arquétipo, eu não teria sentido emoção em Maiorca; mas sem esse arquétipo, num mundo realista e prosaico de pombas cinzentas e sujas, a minha pomba branca (A Pomba Branca) ter-me-ia parecido um monstro ou uma aparição; e teria perdido assim, privado do arquétipo, a própria realidade.

“Milagres” são as conexões, raras mas possíveis, entre os arquétipos e o mundo quotidiano. Há que explorar esses milagres; há que provocá-los. Os arquétipos vivem mais tempo que as coisas, mas acabam morrendo, umas vezes sob a pressão das próprias coisas, outras pelo uso que os homens fazem deles ou contra eles. Mas a política -a gestão, digamos, da história como luta de classes- não pode consistir em combater os arquétipos: tem que combater a partir deles, pois são o meio humano por excelência -como a água é o dos peixes. Os arquétipos não são -ou não são apenas- instrumentos de alienação mas também fermentos de emoção libertadora. A história é a luta entre as classes, mas também a luta entre os arquétipos: a luta “eterna”, por exemplo, entre o arquétipo da pomba branca e pura e o arquétipo do lobo predador, uma luta na que todos temos de tomar partido.

 

Texto de Santiago Alba Rico publicado pela Rebelion em 27 de Março de 2015. Tradução de Alexandre Leite.


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