Acreditem ou não, houve um tempo em que os trabalhadores realmente participaram de forma directa no processo político, acreditando que como membros da classe produtora eles podiam lidar com os assuntos do estado e eventualmente tomar o controlo da empresa para a qual trabalhavam; o socialismo do séc. XIX era basicamente sobre isto. A totalidade dos textos de Marx debruçava-se essencialmente sobre a forma como o capitalismo industrial tinha criado as pré-condições para esta reviravolta, uma análise que incluía a natureza da crescente socialização da produção e da distribuição tornada possível pelo sistema fabril que por sua vez tinha conduziu à formação de sindicatos e partidos políticos dos produtores que os iriam representar e lutar pelos seus interesses.
No entanto, a ‘educação’ mandatada pelo estado tinha um objectivo muito mais limitado, nomeadamente o de equipar os trabalhadores com o mínimo de capacidades necessárias para colocar em funcionamento as máquinas e os processos industriais do capitalismo. A educação para além deste objectivo mínimo era não só considerada desnecessária como perigosa.
O tema de como é que esta revolução iria aparecer ocupou a esquerda desde essa altura: seria através de uma revolução, armada ou não, ou através do boletim de voto, ou talvez uma combinação dos dois?
O papel da educação neste processo foi reconhecido pela geração dos meus pais. O meu pai, que deixou a escola aos 14 ou 15 anos de idade, foi totalmente autodidacta e um típico intelectual da classe trabalhadora do seu tempo. As prateleiras de livros do nosso apartamento atestavam a amplitude e profundidade dos interesses dos meus pais. O conhecimento era visto como um processo libertador e mais importante do que isso, eles estavam a adquirir conhecimentos que anteriormente estavam reservados às classes alta e média com educação, os outrora administradores do capitalismo.
Marx acreditava que atingir o socialismo só era possível nas sociedades mais desenvolvidas, na Europa, mais especificamente na Alemanha, onde a socialização da produção era mais desenvolvida e a visão bem como a organização dos produtores era mais avançada. Mas a revolução bolchevique de 1917 transformou completamente o debate; a Rússia, apesar de tudo, era uma sociedade subdesenvolvida composta principalmente por trabalhadores rurais ainda quase numa existência feudal, não sendo a mais fértil das situações para a criação de uma sociedade conduzida por trabalhadores com formação. O debate tem intensificado desde aí e à luz do número de países que tentaram construir economias socialistas, virtualmente todos eram subdesenvolvidos, parece que neste ponto, nós estamos mais distantes de ter essa visão socialista do séc. XIX.
Este não é um debate meramente académico; de facto pode-se dizer que a sobrevivência da nossa espécie depende da resolução deste assunto de uma vez por todas.
Mas os anos foram passando e cada vez mais os ‘empregados do estado’ ou políticos como normalmente são chamados, transformaram-se numa casta auto-perpetuadora que nos governam mais num género clerical de do que facilitando um processo participatório inclusivo. Estão a longa distância daqueles visionários do séc. XIX que se viam como herdeiros inevitáveis da riqueza que criavam.
Em vez de um aumento da participação na administração da sociedade – que é o verdadeiro significado da democracia, não o voto ‘per se’ – nós vemos que com a criação desta elite dirigente, as pessoas estão tão alienadas do funcionamento da sociedade como estavam antes de obterem o direito de voto, um inversão um pouco irónica não acham?
Este desenvolvimento explica em parte porque é que a classe política dominante gasta tanta energia em tentar encontrar formas de ‘envolver’ o eleitorado, apesar de serem todas falsas, pois eles perceberam que a ficção da democracia, através do voto, não é suficiente para manter a legitimidade e mais do que isso, a crença no ‘sistema’.
Mas independentemente disso, com uma casta de dirigentes políticos profissionais a tomarem todas as decisões, divorciados das reais necessidades e preocupações do cidadão, a ordem capitalista está, cada vez mais, em crise. De facto, pode-se dizer que a classe política dirigente juntou lenha para se queimar ao ‘profissionalizar’ o processo político.
Eles enfrentam agora uma tarefa impossível, literalmente a de tentar fazer a quadratura do círculo, pois como pode haver um envolvimento das pessoas quando todas as avenidas da participação real foram removidas? Por muito limitado que fosse ser membro de um partido (ou membro por afinidade, via sindicato), pelo menos dava às pessoas alguma voz. A filiação no Partido Trabalhista, por exemplo, reduziu-se a metade nos últimos cinco anos. Já não é uma organização política de ‘massas’ com representação ao nível das bases.
A filiação tanto em sindicatos como em partidos políticos de qualquer género caiu vertiginosamente, especialmente desde que o ‘Novo Trabalhista’ assumiu o poder, piorando ainda mais porque o maior empregador é agora o próprio estado e ainda mais gigantesco se tivermos em consideração os empregos nos serviços públicos que foram ‘adjudicados a terceiros’ ou privatizados.
Os que estão à ‘esquerda’ do Partido Trabalhista ainda acreditam que podem de alguma forma recuperar o processo político, mas sem um genuíno envolvimento das bases desde a raiz, nos círculos eleitorais por exemplo, tal desejo é uma fantasia, já que os mecanismos deixaram de existir. Pior ainda, aqueles à esquerda do Partido Trabalhista ainda funcionam na ilusão de que podem de alguma forma voltar o relógio atrás até aos dias ‘gloriosos’.
A resposta das ‘esquerdas’ a esta situação é lamentável, em primeiro lugar ainda nem reconheceu que aconteceu realmente e em segundo lugar não conseguiu reconhecer as limitações dos tradicionais partidos políticos da esquerda, todos sendo consequência ou produto de organizações da classe trabalhadora, principalmente dos sindicatos, que estiveram de qualquer forma principalmente envolvidos em assuntos económicos, de salários, de condições económicas, etc.
Para a grande maioria das pessoas que trabalham, os assuntos económicos já deixaram de ser um tema principal. A definição clássica de Marx de alienação ocupa agora o palco principal e mais uma vez sublinha o papel crucial da educação, ou antes da falta dela, pois está a decorrer um processo ainda mais insidioso nomeadamente a criação de dois grupos bem distintos dentro da classe dos produtores, os chamados ‘chavs’ [1] e as ‘chatterering classes’ [2], resultado de dois tipos de educação e meios socio-económicos totalmente diferentes (não propriamente um fenómeno novo mas expressado numa nova forma e reforçado pela criação da classe política profissional acima descrita).
Ambos os grupos são facilmente reconhecíveis pela forma como os mass media se dirigem a eles, especialmente a imprensa, com as ‘parangonas’ ou os tablóides dirigindo-se aos ‘chavs’ (ou pelo menos ao segmento da classe produtora de onde eles surgem) e os jornais de ‘qualidade’, aos ‘chatterers’.
Estes dois grupos são a expressão visível da transformação fundamental na forma como o capitalismo mantém o controlo, que aconteceu nas últimas duas ou três décadas, em grande medida pela expansão do sistema ‘educativo’ para incluir aqueles que não herdaram o seu ‘lugar’ na classe dominante, como costumava ser.
Entretanto, o resto é entretido através de um grande consumismo e um apelo aos mínimos denominadores comuns que consistem em apelos ao patriotismo, à xenofobia, e em histéricos títulos das ‘notícias’ acerca de crimes, ‘comportamento anti-social’, imigração, pedofilia, ou qualquer outra parangona que seja considerada ‘digna de nota’.
O ‘entretenimento’ para os ‘chavs’ consiste principalmente na criação de mundos de fantasia e escape da rotina diária de vidas que, para além do consumo, estão totalmente divorciadas de um real envolvimento no controlo sobre os acontecimentos que os afectam. E sentindo a natureza sedutora da cultura das ‘celebridades’, o estado foi lesto a embrenhar-se e a explorar esses desejos, e por isso vemos Blair na sua colaboradora confraternização com estas ‘estrelas’, em eventos altamente publicitados nos media, ou para ‘ajudar a acabar com a fome em África’ ou qualquer coisa assim.
O objectivo é claro; ao participar nestes eventos de ‘celebridades’ a elite política dominante espera estabelecer uma relação com as ‘massas’.
O que este processo revela é o grande fosso político entre os governantes e os governados, com milhões de pessoas privadas de qualquer tipo de representação política, um fosso que tem sido (convenientemente) preenchido pelos media estatais e corporativos numa ‘(não)santa aliança’ com a classe política dominante que, através de manhosos relatórios (e ‘fugas de informação’), informa efectivamente os mass media sobre o que devem focar.
Basta-nos olhar para a histérica cobertura do rapto da jovem rapariga em Portugal para termos uma ideia de como o processo funciona, por muito terrível que isso seja para a família da jovem rapariga. O seu tratamento pelos grandes meios de comunicação ocultou efectivamente qualquer outra cobertura noticiosa. E de facto, as ‘notícias’ podem ser vistas como uma sucessão deste tipo de acontecimentos, acontecimentos que obviamente tocam os corações das pessoas, no fundo este é um acontecimento terrível, mas será mais terrível do que os crimes de guerra diariamente praticados contra as crianças iraquianas, afegãs ou palestinianas?
O “sequestro” (BBC TV, 12/5/2007 ou “rapto”, BBC Radio 4, 15/5/2007 e ocasionalmente relatado como “captura”) dos três soldados de ocupação norte-americanos pela Alcaida [ou Al Qaeda] no ‘Triângulo da Morte’ é mais um exemplo dos dois pesos e duas medidas usados. O sequestro e obtenção de reféns pelas forças de ocupação de, literalmente, milhares de iraquianos nunca é mencionado, comparando com o tipo de cobertura saturante dedicada aos ‘nossos rapazes’.
Assim, os acontecimentos são cuidadosamente divididos em pequenos pedaços para serem digeridos ao estilo da comida rápida, por um público esfomeado não apenas de factos mas também de qualquer tipo de conhecimento sobre as políticas governamentais.
As ‘chattering classes’ entretanto produzem não apenas versões fortemente desinfectadas de uma realidade para consumo externo mas também ‘falam uns com os outros’ através dos seus porta-vozes mediáticos revelando e existência de duas realidades paralelas, ambas considerando os mesmos assuntos mas de formas completamente diferentes.
Parece-me importante reconhecer que aqueles que governam o nosso país têm vindo a fazê-lo nos últimos quinhentos anos numa cadeia de comando virtualmente ininterrupta, com as experiências a passarem de uma elite governante para a seguinte. Os berçários destas elites dominantes são as escolas, universidades, forças armadas, o sistema legal, clubes (provavelmente o componente mais importante) e o último ninho, os meios de comunicação, em especial a BBC que foi rápida a reconhecer o poder dos Novos Media para manipular a realidade.
Eles são, sem dúvida, uma das elites dominantes mais inteligentes, mais manhosas, e acima de tudo, mais autoconfiantes. A experiência obtida através das diferentes épocas, desde o seu início como comerciantes e banqueiros engordados pelo comércio de escravos, até aos dias de hoje, mostra a sua adaptabilidade e capacidade de prever os acontecimentos. Até agora.
Eu arrisco dizer que começando pelos primeiros anos de Thatcher (e continuando até ao desconhecido fim do Novo Partido Trabalhista), esta elite dominante foi fracturada pela chegada do exército de ineptos, imbecis dos media, deambuladores, ladrões, mentirosos e simples ajudantes cabeças ocas. Foi, no fundo, este grupinho que desmantelou pela própria mão o ‘consenso’ cuidadosamente construído que tem mantido os governados e os governantes firmemente no seu recanto.
Ao destruir a ilusão de uma democracia que tem, alegadamente claro está, um milhar de anos, o regime de Blair criou uma crise dentro da elite dominante. Incapaz de absorver as mudanças impostas pelo gangue de Blair, a estabelecida elite está a sofrer uma crise de confiança nos seus mestres políticos.
O exemplo mais óbvio tem sido a sua incapacidade de utilizar com eficácia a tecnologia dos computadores no sector dos serviços públicos. A relação tradicional entre os administradores e os seus técnicos foi rompida com a chegada das hordas de Blair, sob a forma de uma mão cheia de empresas de TI [Tecnologias de Informação], nem uma única provando ser adequada à tarefa, ou como diria Blair, ‘apta para o propósito’.
Isto pode parecer trivial, mas um dos grandes sucessos do estado britânico tem sido a sua capacidade de manter um suave funcionamento do estado nos bons e nos maus momentos. Mas eu temo que a sua burocracia altamente controlada dos serviços públicos, uma máquina bem oleada construída durante séculos, enfrente agora os devoradores de Blair, que foram deixados à solta para esvaziar o cofre público à vontade, sem que poupem alguma coisa útil ou de valor, que nem foram capazes de fazer funcionar como pretendido, nenhuma da sua ‘nova burocracia electrónica’. Mas se formos a ver, o que é que o governo de Blair sabe sobre a forma como funcionam as burocracias? Praticamente nada, excepto o que lhe dizem as sanguessugas das TI.
A importância desta mencionada falência na criação de um estado corporativo securitário por Blair deveria ser óbvia. Sem nenhumas verificações e balanços democráticos e uma visão geral por parte das pessoas, o estado continua a necessitar de funcionar eficientemente, os seus serviços públicos têm de fazer rolar a máquina estatal.
O golpe no PC [Grupo de Conselheiros] de Blair está descontrolado; o rei não tem mesmo roupa. Em vez disso ele criou uma sombra de descontentamento interna e externa e ela não desaparecerá com a coroação de Brown como seu sucessor.
Ao desligar as pessoas das eleições e depois desapontá-las com um par de truques vazios e extremamente caros e passes de magia, supostamente como um substituto daquilo que elas perderam – principalmente a sua liberdade, se ao menos o perceberam – o Projecto Blair enfrenta um verdadeiro dilema. Sem um consenso geral para balizar o seu alegre caminho para sabe-se lá onde, sem dúvida que aqueles que formulam as políticas esperam que o duro Brown lhes dê alguma lufada de ar fresco que lhes permita pensar sobre o que fazer a seguir, principalmente ganhar as próximas eleições.
Enquanto o ‘business as usual’ [‘negócio a correr bem’] possa ser mantido, a elite política dominante apenas se preocupa em preservar o seu poder, riqueza e influência pessoal, e nós podemos esperar pouca coisa dos nossos representantes ‘eleitos’ independentemente de como se auto-intitulam. Ao remover os últimos vestígios até de uma farsa de participação democrática, nós temos agora aquilo que poderia ser descrito como uma forma de capitalismo gangster, alimentando-se da cortesia dos cofres públicos na privatização do domínio público.
Num sentido muito real, o símbolo do estado sob a forma do Parlamento, não apenas perdeu toda a legitimidade, residindo em esplêndido isolamento numa construção do Gótico Vitoriano, mas tal como o governo, mascarado de algo que não é, entregou o poder que tinha sobre o funcionamento do estado aos vampiros de Blair, que estão na realidade a ‘extrair lucro’ dos recursos públicos sob a capa da ‘eficiência’ e da ‘reorganização’.
Mais cedo ou mais tarde as pessoas vão abrir os olhos ao que o ‘Blatcherismo’ [Blair + Thatcher] fez, a questão é, iremos ter uma voz e os meios para mudar o rumo?
Notas
1. Para mais sobre o termo ver en.wikipedia.org/wiki/Chav. Apesar de originalmente usado para identificar os jovens da classe trabalhadora, obcecados com o aspecto ou com a moda, eu tomei a liberdade e usei o termo para descrever o produto ‘mais baixo’ do nosso sistema educativo de dois níveis; aqueles que pela falta de recursos financeiros ou de enquadramento, não frequentaram ou muito dificilmente chegarão à universidade e vêem assim negados os dúbios benefícios que advêm da obtenção de uma ‘educação superior’. Diabolizados e explorados por uns cruéis mass media, criminalizados pelo estado de Blair, eles apresentam um extremo contraste com os ‘chatterers’.
2. A Wikipedia define, em parte, as ‘chattering classes’ da seguinte forma: “Chattering classes’ é um termo usado frequentemente pelos meios de comunicação e pelos comentadores políticos para se referirem a uma secção elite da classe média com elevado grau de educação, politicamente activa, com preocupações sociais, especialmente aqueles com ligações académicas, políticas, e nos meios de comunicação.”
Ambos são os pólos opostos da ‘Nova Grã-Bretanha’ de Blair. No meio fica o resto de nós, também sem voz, tal como os ‘chavs’.
Texto da autoria de William Bowles publicado a 15 de Maio em http://williambowles.info/ini/2007/0507/ini-0483.html . Tradução de Alexandre Leite.