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investigandoonovoimperialismo

O desafogo moral supremacista na Palestina

09.10.23

Terroristas sanguinários do Hamas assassinam civis desarmados numa cidade de Israel. Todo o Ocidente condena a cruel aberração. Represália democrática contra os terroristas desumanos. Volta o equilíbrio, o desafogo moral, a superioridade reestabelece-se, já se pode continuar a brutal repressão do povo da Palestina por parte dos nossos sócios e amigos israelitas. Continuemos a dar lições sobre o que é justo, o bem e a democracia. Matar civis é errado. Todos aplaudimos, todos de acordo, afagamos os nossos egos, sorrimos para o telemóvel depois de ter escrito a nossa condenação banal, oca e ridícula que ninguém nos pediu e bebemos outro gole de cerveja.

 

Ursula Von Der Leyen estava “deeply concerned [profundamente preocupada]” após o ataque do Hamas e reconhecia o direito de Israel a se defender. Este comentário, que se usa cada vez que se avizinha uma violenta guerra de represália sionista, nunca é feito quando os colonos israelitas fazem um pogrom contra os palestinianos em Jenin, porque, embora não o expressem abertamente, as potências ocidentais defendem o direito do Estado de Israel a ocupar, reprimir, assassinar e realizar limpezas étnicas de palestinianos. Por isso, nunca iremos ver a mensagem de um mandatário internacional reconhecendo o direito da Palestina a defender-se depois de 100 anos de colonização, guerra e ocupação.

Ninguém é levado ao engano no que concerne às relações internacionais e à sua pretensa bondade na hora de agir num conflito. Tudo o que se argumenta com a Ucrânia frente à Rússia serve para a Palestina frente a Israel. Mas Israel é o "nosso filho da puta" e olhamos para o lado, da mesma forma que  deixamos o caminho livre para limpeza étnica no Nagorno-Karabakh.

 

Arthur James Balfour declarou em 1917 que os britânicos não tinham “sequer a intenção de passar pelo formalismo de consultar a vontade dos atuais habitantes do país”.  Essa é a história da Palestina, do colonialismo e da repressão sionista do povo palestiniano com a colaboração, conivência e silêncio de todas as potências ocidentais, desde que se decidiu despojar um povo da sua terra. Agora queremos explicar um conflito histórico e ocultar a responsabilidade da violência com o último ataque terrorista do Hamas. É compreensível, é uma maneira de se proteger a consciência, justificar o conflito de forma simples e maniqueísta, para que a roda da repressão possa continuar a girar, menorizando a sistémica violação dos direitos humanos palestinianos que não passa de uma simples nota de rodapé nos meios de comunicação ocidentais.

 

Arthur James Balfour foi o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico que passou a certidão de nascimento do sionismo através de uma missiva enviada em 1917 a Lionel Walter Rothschild, um barão que era líder da comunidade judaica na Grã Bretanha. A carta dizia: “Estimado Lord Rothschild. Tenho o grande prazer de lhe enviar, em nome do governo de sua Majestade, a seguinte declaração de apoio às aspirações dos judeus sionistas que foi remetida ao gabinete e aprovada pelo mesmo. 'O governo de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento, na Palestina, de um lar nacional para o povo judeu e empregará os seus melhores esforços para facilitar a concretização desse objetivo, ficando claro que não se deve fazer nada que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas existentes na Palestina, os direitos e o estatuto político que desfrutam os judeus em qualquer outro país’. Ficarei agradecido se você der conhecimento desta declaração à Federação Sionista. Arthur Balfour.”

A declaração Balfour converteu-se na primeira declaração sionista, isto é, o direito do povo judeu a estabelecer-se nos antigos reinos bíblicos de Judá e Israel. O sionismo declarado da carta instaurou-se não cumprindo um dos princípios fundamentais da breve missiva: o respeito pelos direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas existentes na Palestina, porque se algum ensinamento nos deixou a história é que o sionismo se construiu sobre o sangue dos povos semitas que ocupavam esse território antes de que o colonialismo decidisse por eles. Não se pode explicar, nem minimamente, a repressão sofrida pelo povo palestiniano num simples artigo de opinião, mas assinalar o ano da declaração Balfour serve para colocar em evidência as mensagens simplistas que reduzem tudo à denúncia de que não é correto que o Hamas mate civis em Israel.

Latuff Palestina

Cartoon de Latuff.

O Hamas é uma organização terrorista que se alimenta e expande pela violação dos direitos humanos por parte de Israel e dos impérios coloniais desde 1917. Cada ocupação, cada massacre sionista, cada criança morta, cada casa destruída pelos colonos, cada expulsão de uma família das suas terras é um menor armado com uma kalashnikov. O processo colonial sionista imposto pela Grã Bretanha e Israel chegou numa época em que se impunham os processos de descolonização e por isso fracassou. Os sionistas equivocaram-se no tempo para expulsar os palestinianos e desvalorizaram a capacidade de resistência de um povo digno que aguentou um século frente às grandes potências imperiais e militares do nosso tempo. O ataque brutal do Hamas sobre Israel pode dar-lhes a justificação que procuravam para acabar com o conflito centenário de uma das três únicas maneiras possíveis: a que sempre procurou Israel, com a total eliminação e expulsão dos palestinianos da sua terra mediante um genocídio e uma limpeza étnica. As outras possibilidades, já descartadas por impossíveis, são a expulsão do colonizador, como na Argélia, ou o acordo justo entre iguais como na África do Sul depois do apartheid. Quem se sentir melhor pessoa por ficar escandalizada com a violência brutal dos terroristas do Hamas em Israel contra a população civil é porque nunca se interessou de verdade pelo que acontece na Palestina. Que não se julguem melhores, são apenas mais ignorantes.

 

Texto de António Maestre publicado ElDiario.es a 8 de outubro de 2023. Tradução de Alexandre Leite.


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